Consagrar o direito de qualquer cidadão a ter casa, alimentos e cuidados médicos, pressupõe que os recursos do planeta chegam para todos?
Pressupõe que cada Estado que subscreve o tratado internacional em questão deve adoptar todas as medidas que estejam ao seu alcance, dentro dos recursos económicos disponíveis, para assegurar a realização destes direitos. Pressupõe uma utilização efectiva dos recursos existente e uma caminhada progressiva na realização destes direitos. Pressupõe igualmente que qualquer medida regressiva – isto é, qualquer recuo – na realização de um destes direitos tenha de ser justificada à luz de circunstâncias excepcionais, tais como um desastre natural, uma grave crise económica, etc. Pressupõe igualmente que temos de ter graus de exigência diferentes de país para país. Isto é, não podemos estabelecer a mesma meta – em termos absolutos – para a Suécia e para o Ruanda. Temos antes de ver quais as medidas que cada um dos países está a adoptar – a partir de pontos de partida muito distintos – para a promoção destes direitos.
Se estes direitos já estavam consagrados desde há 60 anos na Declaração Universal dos Direitos Humanos, que efeitos políticos pretende alcançar este protocolo?
A Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH) é, como o próprio nome indica, uma “mera” declaração que consagra de forma genérica um conjunto de princípios gerais em matéria de direitos humanos. Não estou a sub-estimar o valor da Declaração, já que a mesma veio inspirar um conjunto enorme de subsequentes tratados de direitos humanos adoptados a nível universal ou regional, bem como um conjunto de legislação, incluindo Constituições nacionais. Contudo a DUDH não tem formalmente força jurídica obrigatória. É por isso que, em 1966, a mesma foi completada por dois tratados de direitos humanos que vieram desenvolver os princípios consagrados na DUDH e dar-lhes força jurídica obrigatória. Um desses tratados – o Pacto dos Direitos Económicos, Sociais e Culturais, que consagra os direitos de que acima nos referimos – não foi dotado de um sistema de queixas. Isto é, tratou-se de um tratado que consagrava direitos, mas que depois não dava aos cidadãos os meios para se queixarem no caso de os referidos direitos não estarem a ser cumpridos ou realizados pelos Estados. Ficava a meio caminho! Enquanto que o outro tratado de direitos humanos, também adoptado em 1966 – o Pacto sobre os Direitos Civis e Políticos – previa já um sistema de queixas individuais, para casos de tortura, de violação do direito a um processo justo, da liberdade de expressão ou religião.
Assim, o novo Protocolo tem um valor decisivo, na medida em que vem dar às vítimas das violações destes direitos os meios e ferramentas necessários para se queixarem à ONU e para exigirem dos seus Estados respectivos o respeito por estes direitos. É um marco muitíssimo significativo na história dos direitos humanos na ONU, porque vem finalmente restabelecer o equilíbrio e a igualdade de tratamento entre os direitos económicos, sociais e culturais por um lado, e os direitos civis e políticos por outro.
Assim, e para mim, a mensagem deste novo Protocolo é muito simbólica, já que vem dizer ao mundo que o sofrimento de uma vítima de fome crónica ou o sofrimento de uma pessoa que não tem acesso a medicamentos para tratar da sua doença não é menos digno de protecção e atenção do que o sofrimento de uma vítima de tortura. Com este protocolo, os direitos à saúde, alimentação, habitação entre outros deixam de ser os parentes pobres dos direitos humanos.
Que desafios irá colocar este protocolo aos Governos?
Acho que colocará desafios extremamente positivos e estimulantes. Se um particular apresentar uma queixa à ONU e se a ONU vier dizer que o Estado em questão está a violar um determinado direito humano, esta decisão da ONU poderá ter um efeito muitíssimo positivo no seio do Estado. Isto porque certamente o país em questão irá analisar mais atentamente a lei ou a política que foi considerada pela ONU como violadora de direitos humanos. Terá certamente lugar uma discussão a nível nacional sobre o assunto e muito provavelmente a lei ou política será revista e mudada para melhor. Desta forma ficam todos a ganhar.
Isto já aconteceu várias vezes a Portugal no âmbito do Conselho da Europa (mais concretamente no contexto da Carta Social Europeia). Portugal foi “condenado” devido à existência de trabalho infantil e devido à inexistência de uma proibição total de castigos corporais contra crianças no nosso país. Estas decisões por parte do Conselho da Europa fizeram com que a nossa legislação e políticas nestas áreas mudassem para melhor e que hoje sejamos apontados como um exemplo por todas as pessoas que estudam estas matérias a nível internacional.
Como se desenrolam os lobbies sobre questões de Direitos Humanos ao nível da ONU?
Existem uma série de Organizações Não-Governamentais que tentam convencer cada uma das delegações na ONU da bondade de uma determinada causa ou questões. Nas negociações a que presidi pude contar com a ajuda imensa de várias ONG (como a Amnistia Internacional, a Comissão Internacional de Juristas, a Action Aid, a Human Rights Watch só para citar um ínfimo número) que apoiaram as negociações, esclareceram os países e não deixaram que o texto do protocolo fosse enfraquecido.
Quais serão os principais oponentes à ratificação do protocolo e porquê?
São curiosamente os países mais ricos do mundo! EUA, Canadá, Japão ou Dinamarca. Isto porque – na sua opinião – têm sociedades civis muito activas que irão usar um mecanismo de queixas “até à exaustão”. Pura e simplesmente têm receio de condenações repetidas por parte da ONU. Honestamente não me parece que tal venha alguma vez a ser o caso. Isto porque, apesar das pessoas destes países poderem certamente apresentar muitas queixas, isso não quer dizer que cada queixa dê azo a uma condenação por parte da ONU. Acho que, mais tarde ou mais cedo, estes e outros países acabarão por ratificar o protocolo!
Biografia
Presidente-Relatora da Comissão das Nações Unidas de Redacção de um Protocolo Facultativo ao Pacto Internacional sobre os Direitos Económicos, Sociais e Culturais.
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