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#97 | 04 Fevereiro 2008
   
 
     
 



José Brito
“O Homem ainda terá que mostrar que consegue habitar este inconstante planeta”

 

Quais as especificidades da fauna da Mauritânia que a torna objecto do seu trabalho?
A fauna da Mauritânia apresenta uma diversidade específica excepcional, fruto da sua orografia e posição geográfica na costa da África Ocidental. A maior parte da Mauritânia encontra-se coberta pelo deserto do Saara, com temperaturas médias anuais de 35 ºC, e sujeita a ventos quentes carregados de areia. Mas a localização próxima do mar, do Magreb e da África sub-saariana, fazem da Mauritânia uma encruzilhada biogeográfica. Os 600 m de altitude das montanhas do Adrar Atar e Tagant actuam como barreiras às ténues nuvens provenientes do Atlântico, retendo a humidade que circula no ar. Adicionalmente, como a Mauritânia se localiza na faixa de transição entre o deserto e a savana, no extremo sudoeste do Saara, apresenta um gradiente meridional de aumento na pluviosidade. Estes gradientes de altitude e de precipitação permitem a distinção de cinco tipos de ecossistemas que apresentam faunas com variadas origens biogeográficas: 1) deserto saariano de elevada aridez apresentando uma elevada diversidade de paisagens, como estepes arenosas, extensas planícies de areia e pedra e mares de dunas, ocupadas por espécies tipicamente saaro-sindianas (originárias do Saara e Península Arábica); 2) deserto costeiro atlântico com paisagens semelhantes às do deserto interior mas com permanente humidade oceânica que se traduz em vários endemismos e elevada diversidade florística e faunística; 3) Sahel com savana de acácias dispersas mas que se adensa ao longo do gradiente latitudinal que acompanha o aumento da pluviosidade média anual. Assim a riqueza específica também aumenta para sul, com o aparecimento de espécies de origem afro-tropical, comparativamente aos ecossistemas saarianos; 4) zonas húmidas costeiras com estuários de rios e lagoas que constituem local de invernada para cerca de 3 milhões de aves; 5) montanhas de Adrar Atar e Tagant constituindo autênticas ilhas para diversas espécies de origem sub-saariana que ocorrem em populações isoladas, como é o caso do Crocodilo do Nilo (Crocodylus niloticus).

Que aptidões desenvolveram os crocodilos para sobreviver em circunstancias adversas?
Desde a formação do Saara há 7 milhões de anos (M.A.) que o clima desta região tem alternado entre fases de climas secos e húmidos. Estas oscilações climáticas geraram ao longo do tempo ciclos de expansão e contracção das áreas desérticas. Durante os períodos húmidos as espécies de origem Afro-tropical, como o crocodilo, colonizaram a maior parte do Saara, mas quando as fases áridas se impuseram estas persistiram em refúgios localizados nas montanhas, em lagoas e planícies de aluvião. Desde há 6 mil anos (pico da última fase húmida) que a crescente aridez do Saara tem provocado extinções de populações de vertebrados dependentes de habitats com vegetação ou água. Assim, os crocodilos que actualmente ocorrem no Saara foram apanhados numa fase de crescente aridez em que a época das chuvas se tornou temporalmente reduzida e de ocorrência irregular. Enquanto que nas lagoas com água permanente este facto não afecta o ciclo de actividade do crocodilo, o mesmo não ocorre nas planícies de aluvião. Nestes locais, a actividade dos crocodilos resume-se ao período em que existe água, entre Julho e Agosto. Nos restantes 10 meses do ano, os indivíduos vêm-se obrigados a estivar, escondendo-se em buracos nas encostas rochosas. Enquanto os crocodilos a sul do Saara permanecem activos durante todo o ano (ou estivam durante curtos períodos), muitas das populações saarianas vêem restringido o período de alimentação e reprodução a pouco mais de oito semanas. Dado que dispõem de pouco tempo para se alimentarem e que as presas disponíveis são de pequenas dimensões (apenas peixes e anfíbios), apresentam uma taxa de crescimento mais reduzida e atingem dimensões corporais muito menores, cerca de 2 m, dos que os seus congéneres sub-saarianos (que atingem os 6 m). Portanto, os crocodilos da Mauritânia aparentemente não desenvolveram capacidades específicas para sobreviver no ambiente desértico; provavelmente estão é no limite das capacidades fisiológicas para a espécie.

Quais são as principais ameaças à preservação destas espécies?
As lagoas onde ocorrem as populações de crocodilos são geralmente de pequenas dimensões, frequentemente 20x20m. Assim, o número de indivíduos que suportam é reduzido, oscilando entre apenas 1(!) e cerca de 20 indivíduos. Dado que os crocodilos vivem isolados nas lagoas, vêm-se obrigados a reproduzirem-se entre si, facto que contribui para a perda de diversidade genética e depressão por consanguinidade. A longo prazo pode haver uma redução das capacidades de reacção perante factores exógenos (ex: infecções). Sem contacto com as populações-mãe da África sub-saariana, estas populações são ainda vulneráveis a catástrofes (ex: seca acentuada). Portanto, o isolamento populacional e a drástica redução das dimensões dos habitats favoráveis são as principais ameaças à preservação do crocodilo, tornando-o vulnerável à extinção por fenómenos imprevisíveis, perda de diversidade genética e flutuações demográficas. Estas ameaças afectam também outros vertebrados que ocorrem nas lagoas, como diversos peixes (Barbus, Tilapia), anfíbios (Bufo xeros e Hoplobatrachus occipitalis) e répteis semi-aquáticos (Varanus niloticus). Estes hotspots de biodiversidade são também muito vulneráveis às actuais alterações climáticas, uma vez que estas espécies normalmente apresentam fortes correlações com factores ambientais e capacidades de dispersão relativamente reduzidas. No entanto, a pluviosidade pode ser forte durante a época das chuvas, traduzindo-se no alagamento de vastas planícies de aluvião adjacentes às lagoas. Este evento imprevisível e de curta duração pode conectar alguns destes habitats isolados e permitir a dispersão entre populações com fluxo génico associado. O projecto financiado pela National Geographic que actualmente coordeno pretende analisar a variabilidade genética e a estruturação das populações isoladas por forma a determinar se existe ou não fluxo génico entre elas.

Podemos dizer que há animais mais bem adaptados ao planeta Terra do que o Homem?
Com origem há cerca de 200 M.A. durante o Triássico, os crocodilos encontram-se seguramente entre os animais mais antigos do planeta, tendo sobrevivido incólumes ao declínio dos dinossáurios. Durante milhões de anos estes foram dos maiores vertebrados do planeta. Por exemplo, são conhecidos fósseis em Portugal desde o Jurássico Inferior (180 M.A.) até pelo menos ao Miocénico Superior (10 M.A.), altura em que crocodilos da família Gavialidae, com quase 7 m de comprimento, ocupavam a bacia do Baixo Tejo. Embora o registo fóssil indique que existiu uma elevada diversidade de formas, na actualidade apenas restam 23 espécies, quase todas com enormes reduções na área de distribuição original e muitas ameaçadas de extinção. Mesmo assim, os crocodilos apresentam uma longínqua história de sucesso de utilização dos habitats aquáticos, desde lagoas e rios continentais até praias oceânicas e mar aberto, desde os amplos rios africanos às zonas pantanosas das densas florestas equatoriais da América do Sul e da Ásia, e com reduzidas modificações anatómicas ao longo do tempo. As actuais populações isoladas de crocodilos no Saara constituem precisamente um exemplo da extraordinária capacidade de resistência a condições adversas. Pelo contrário, o Homem é muito mais recente no planeta Terra. Embora seja incontestavelmente um caso de sucesso na exploração dos habitats disponíveis, ainda está por demonstrar a sua capacidade de sobrevivência perante eventos geológicos ou climáticos de alcance global. Por exemplo, como reagirá a espécie humana perante o impacte de um meteorito de grandes dimensões? Os crocodilos já deram provas disso mas o Homem ainda terá que mostrar que consegue habitar este inconstante planeta.

Que vantagens advêm para o Homem da preservação da biodiversidade?
Não temos o direito de destruir a biodiversidade uma vez que fazemos parte dela. Este é o principal e verdadeiro motivo pelo qual se deverá preservar a biodiversidade. Tal como não faz sentido destruirmos uma mão ou um dedo, também não é razoável provocar a destruição de um ecossistema ou a extinção de uma espécie. Todos os elementos do planeta Terra são úteis para o Homem, dado que ele foi, é e será mantido pela diversidade. Ou seja, foram as inúmeras interacções com os seres vivos, os habitats naturais e as relações entre estes ao longo do tempo que nos levaram ao momento actual de evolução. Os factores ambientais que modelam a existência da Vida no planeta afectam toda a biodiversidade, naturalmente incluindo o Homem, e a suplantação de desafios futuros será apenas exequível com a biodiversidade no seu todo.

O que o fascina nos répteis?
Os répteis são um grupo fascinante pelo facto de serem os primeiros vertebrados que conquistaram o meio terrestre e que adquiriram independência da água para a reprodução, graças ao desenvolvimento de ovos com casca resistente à dissecação; de serem um dos grupos mais antigos no planeta, com uma história evolutiva complexa que se torna atractivo tentar deslindar; de apresentarem uma grande simplicidade organizacional, mas ainda assim explorarem de forma bastante eficaz os habitats onde ocorrem; de  exibirem por vezes colorações fantásticas e comportamentos únicos (ex: as fêmeas de algumas espécies de crocodilo protegem as crias durante o primeiro ano de vida, exibindo cuidados parentais semelhantes aos de mamíferos); estarem muito menos estudados em comparação com outros grupos taxonómicos, caso das aves e mamíferos, existindo ainda muitas lacunas no conhecimento da história natural destes seres. Finalmente, os répteis são alvo de mitos e superstições muito interessantes, sendo perseguidos pelo Homem desde há milhares de anos (com algumas excepções: camaleões e tartarugas). Assim, estão reunidos os ingredientes para que se torne aliciante ter como objecto de estudo os répteis.

E no deserto?
Também o deserto apresenta diversos motivos de fascínio: devido à ausência de vegetação, as marcas dos eventos geológicos e climáticos são extremamente evidentes na paisagem, resultando assim as acções da natureza em paisagens dramáticas de singular beleza; do ponto de vista científico, o Saara constitui um laboratório natural muito interessante pois são evidentes os processos de especiação resultantes das flutuações climáticas; acresce-se ainda o enorme desafio que constitui trabalhar no deserto, sendo necessário ultrapassar muitas dificuldades na condução, navegação e logística; finalmente, a grande simplificação dos processos quotidianos, que reduz as necessidades ao mínimo indispensável: combustível para a viatura e água para os viajantes, sendo todos os restantes acessórios da vida ocidental dispensáveis ou reduzidos a níveis mínimos de consumo. Portanto, o deserto expõe a nossa fragilidade e reduz-nos às nossas reais dimensões. Tal sensação é inigualável.

Biografia
Licenciado em Biologia pela Faculdade de Ciências de Lisboa (1994) e doutorado em Biologia pela Universidade de Lisboa (2003), actualmente usufrui de uma bolsa de pós-doutoramento no Centro de Investigação em Biodiversidade e Recursos Genéticos (CIBIO) da Universidade do Porto. A actividade científica tem focado sobre a conservação de vertebrados terrestres Europeus e Africanos, principalmente de anfíbios e répteis, incidindo sobre os seguintes temas: (1) Biogeografia: utilização de modelação ecológica, detecção remota e Sistemas de Informação Geográfica (GIS) para a identificação de factores ambientais relacionados com a ocorrência das espécies e derivação de modelos espacialmente explícitos da distribuição das espécies; (2) Biodiversidade: determinação a multi-escalas de padrões de riqueza específica (hotspots e gradientes) e simulação dos efeitos das alterações climáticas na distribuição da biodiversidade; (3) Conservação: quantificação da variabilidade genética e derivação de modelos espaciais da distribuição das espécies para a selecção de áreas prioritárias para a conservação; (4) “Genética da Paisagem”: determinação de padrões espaciais na variação morfológica e genética de espécies por forma a identificar barreiras geográficas à dispersão e fluxo génico, estimar relações filogenéticas, analisar a dinâmica de zonas híbridas resultantes do contacto entre populações diferenciadas de uma mesma espécie ou entre diferentes espécies, e derivar cenários biogeográficos históricos explicativos dos padrões evolutivos das espécies; (5) Ecologia Evolutiva e Comportamento: utilização de rádio-telemetria e GIS para estudar a história natural (crescimento, dieta, fecundidade, maturação sexual, actividade e área vital) de diversas espécies. Durante os últimos 13 anos foi co-autor de atlas da distribuição de anfíbios e répteis à escala regional e nacional, publicou 26 artigos em revistas de circulação internacional e 23 artigos em outras revistas, e participou em 13 projectos de investigação, destacando-se “Phylogeography of the Spiny-footed lizards, Acanthodactylus, in West Africa” financiado pela National Geographic Society (NGS) em 2004. Actualmente é o investigador responsável do projecto “Biogeographic and Evolutionary Patterns in Isolated Vertebrates from Mauritania”, também financiado pela NGS.

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Fotografia Raquel Vasconcelos

 


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