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# 38 | 17 Abril 06
 

Professor Associado e Investigador do Departamento de Matemática do IST

Interessa-se pelo estudo dos Grupoides e dos Algebroides.

Prémio Gulbenkian de Ciência 2001

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Rui Loja Fernandes
“Um matemático talvez não possa descrever à companheira como foi o seu dia.”


Porque é que a Matemática é o esperanto do Universo?
O Esperanto é uma língua que foi criada no século XIX com o objectivo de ultrapassar as barreiras das complexas línguas existentes que são muitas vezes usadas com objectivos hegemónicos e estão no centro de rivalidades étnicas e culturais. Pretendia-se, dessa forma, criar uma língua que não fosse propriedade de ninguém, neutral, baseada em regras simples e claras, que toda a gente pudesse entender facilmente (por exemplo, em Esperanto o plural é sempre formado da mesma forma, sem quaisquer excepções, ao contrário do que se passa em Português e em muitas outras línguas). Mas é claro que o Esperanto não é, de todo, acultural, pois na sua génese estão muitas das culturas do passado e do presente. Todas estas características do Esperanto são comuns à Matemática, tal como nós a conhecemos e praticamos.
A Matemática possui, no entanto, uma característica singular. Para a explicar, imaginemos uma viagem numa nave espacial até outros mundos onde existam outras formas de vida inteligente. Acredito que a Matemática que encontraríamos nesses mundos seria, no essencial, semelhante à Matemática que os humanos desenvolveram (e desenvolvem) ao longo de milhares de anos. Seria, por exemplo, muito difícil ou mesmo impossível explicar a um desses seres que o meu nome é “Rui”, mas acredito que seria fácil concordarmos em simples operações matemáticas, tais como a contagem de objectos. A notação, a simbologia, as representações, ou mesmo o estado de desenvolvimento das Matemáticas nesses mundos poderá ser muito diferente da nossa, mas acredito que nos seus aspectos essenciais as suas Matemáticas serão tais como a nossa, incluindo, por exemplo, as regras elementares da lógica ou o conceito de número inteiro. A Matemática teria assim um carácter verdadeiramente universal!

Que brincadeiras podem ser feitas com a constante de Planck?
A constante de Planck é uma grandeza física fundamental para a descrição do microcosmos. Na realidade é o seu valor que determina a partir de que escalas a Mecânica Clássica (que descreve de forma perfeita os movimentos à nossa escala) deixa de ser válida e a natureza passa a obedecer às leis da Mecânica Quântica. Às escalas atómicas e subatómicas certas grandezas físicas assumem apenas valores que são múltiplos de certos valores fixos (“quanta”), ao contrário do que se passa à nossa escala, onde essas grandezas assumem um contínuo de valores. Um exemplo clássico é o da luz, que à escala macroscópica aparece como uma onda electromagnética contínua e a uma escala submicroscópica é emitida e absorvida em quantidades discretas, ou quanta (os “fotões”).
Do ponto de vista matemático, a constante de Planck é apenas mais uma variável, não sendo o seu valor uma constante universal. Na realidade, existem várias teorias matemáticas de quantização. Numa dessas teorias, chamada quantização por deformação, a constante de Planck surge como uma variável que permite deformar a geometria clássica (que corresponde aqui ao valor nulo da constante de Planck) em geometrias ditas não-comutativas (onde a constante de Planck é não nula). O grau de não-comutatividade da geometria é, pois, medido pelo valor da constante de Planck. Podemos então “brincar” com o seu valor verificando qual é o seu efeito nas propriedades geométricas do espaço. Na verdade, é possível que isto seja bastante mais do que uma “brincadeira” matemática: nos últimos anos surgiram várias teorias físicas promissoras onde a constante de Planck é variável.

Qual a relevância da estética na formulação de uma teoria científica?
A estética tem um papel fundamental na formulação de uma teoria científica. Há muito que deixámos de pensar na ciência como uma mera descrição de uma realidade positiva que existe para lá de nós. A ciência não é uma mera acumulação de factos e verdades absolutas. Como explicou Thomas Kuhn há muitos anos, a ciência é feita de paradigmas, e estes são fortemente influenciados por factores não-racionais, entre eles a estética. Um paradigma permanece válido enquanto não houver dados experimentais que o invalidem. Quando a acumulação de contradições e dados experimentais não explicados pelo paradigma em vigor passam os níveis aceitáveis, começam a surgir novos paradigmas para os explicar. A passagem e a escolha de um novo paradigma entre os vários paradigmas propostos envolve os tais factores não-racionais, onde a estética tem um papel relevante.
Em Matemática, os paradigmas também se sucedem. Embora um paradigma matemático não seja invalidado pela experiência, a necessidade de novos paradigmas surge quando não se conseguem demonstrar resultados que se acreditam ser verdadeiros (as “conjecturas”) ou quando se exploram outras vias (“novos teoremas”). Mais uma vez, a estética e outros factores não-racionais tem aqui um papel relevante, levando a que entre os muitos paradigmas propostos apenas alguns sobrevivam.

Há verdades que nos transcendem?
Durante muito tempo pensou-se que era possível reduzir toda a Matemática a um conjunto simples de premissas, aceites por todos, e a partir das quais poderíamos, através das regras da lógica, deduzir todas os resultados (“teoremas”) da Matemática. Uma das descobertas mais surpreendentes da Matemática do século passado, devida ao matemático Kurt Gödel, foi a de que em qualquer sistema axiomático interessante é possível fazer afirmações às quais não é possível atribuir um valor lógico, i.e., não é possível decidir se essas afirmações são verdadeiras ou falsas. O Teorema de Gödel mostra, por assim dizer, que em qualquer teoria matemática com o mínimo de profundidade existem sempre afirmações que verdadeiramente nos transcendem!

O que é a solidão científica?
Para um matemático a solidão científica transparece a vários níveis.
Antes de mais há a solidão que resulta da falta de reconhecimento social. Um músico, um pintor, um escultor, podem ver os seus trabalhos apreciados por leigos e dessa forma serem reconhecidos pela sociedade em geral. Muitos dos mais belos resultados matemáticos, tais como a Conjectura de Poincaré ou a Hipótese de Riemann, só podem ser apreciados por poucos pois exigem um elevado grau de sofisticação. Ás vezes, mesmo demonstrações de resultados simples como o Teorema de Fermat (que pode ser explicado a alguém com conhecimentos elementares de Matemática) requerem um grau de sofisticação tal que só podem ser verdadeiramente apreciados por um número reduzido de matemáticos.
Depois há a solidão que resulta do facto da investigação em Matemática ser, na sua maior parte, um trabalho de natureza individual. É certo que muitos matemáticos desenvolvem colaborações com outros matemáticos, ou até com outros cientistas. Mas essas colaborações envolvem normalmente não mais do que duas ou três pessoas, o que dilui muito pouco essa solidão. E a minha experiência mostra que mesmo nessas colaborações, em grande parte desenvolvidas à distância, por e-mail, existe uma grande dose de trabalho solitário.
Há, finalmente, a solidão científica que resulta do carácter frequentemente pouco aplicado da investigação em Matemática. Para um físico, um químico ou um biólogo, a solidão científica pode ser compensada pelo facto de os seus resultados poderem encontrar aplicações práticas imediatas, algo que na grande maioria das vezes não acontece em Matemática, mesmo com os resultados mais significativos.
Um matemático quando chega a casa ao final do dia talvez não possa descrever à companheira ou ao companheiro como foi o seu dia. Mas essa solidão científica é largamente compensada pelo prazer de compreender construções complexas e belas, pela emoção da descoberta, e pela excitação de explorar novos mundos.

Anteriores entrevistas:
Miguel Branco
Ricardo Azevedo
Fernando Simões
Nuno Sardinha Monteiro
Maria Dornelas

 
Editor
António Coxito
Produção
Ricardo Melo
Design
Luís Silva
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