Rui Loja Fernandes
“Um matemático talvez não
possa descrever à companheira como foi o seu dia.”
Porque é que a Matemática
é o esperanto do Universo?
O Esperanto é uma língua que foi criada no século
XIX com o objectivo de ultrapassar as barreiras das complexas
línguas existentes que são muitas vezes usadas
com objectivos hegemónicos e estão no centro
de rivalidades étnicas e culturais. Pretendia-se, dessa
forma, criar uma língua que não fosse propriedade
de ninguém, neutral, baseada em regras simples e claras,
que toda a gente pudesse entender facilmente (por exemplo,
em Esperanto o plural é sempre formado da mesma forma,
sem quaisquer excepções, ao contrário
do que se passa em Português e em muitas outras línguas).
Mas é claro que o Esperanto não é, de
todo, acultural, pois na sua génese estão muitas
das culturas do passado e do presente. Todas estas características
do Esperanto são comuns à Matemática,
tal como nós a conhecemos e praticamos.
A Matemática possui, no entanto, uma característica
singular. Para a explicar, imaginemos uma viagem numa nave
espacial até outros mundos onde existam outras formas
de vida inteligente. Acredito que a Matemática que
encontraríamos nesses mundos seria, no essencial, semelhante
à Matemática que os humanos desenvolveram (e
desenvolvem) ao longo de milhares de anos. Seria, por exemplo,
muito difícil ou mesmo impossível explicar a
um desses seres que o meu nome é “Rui”,
mas acredito que seria fácil concordarmos em simples
operações matemáticas, tais como a contagem
de objectos. A notação, a simbologia, as representações,
ou mesmo o estado de desenvolvimento das Matemáticas
nesses mundos poderá ser muito diferente da nossa,
mas acredito que nos seus aspectos essenciais as suas Matemáticas
serão tais como a nossa, incluindo, por exemplo, as
regras elementares da lógica ou o conceito de número
inteiro. A Matemática teria assim um carácter
verdadeiramente universal!
Que brincadeiras podem ser feitas com
a constante de Planck?
A constante de Planck é uma grandeza física
fundamental para a descrição do microcosmos.
Na realidade é o seu valor que determina a partir de
que escalas a Mecânica Clássica (que descreve
de forma perfeita os movimentos à nossa escala) deixa
de ser válida e a natureza passa a obedecer às
leis da Mecânica Quântica. Às escalas atómicas
e subatómicas certas grandezas físicas assumem
apenas valores que são múltiplos de certos valores
fixos (“quanta”), ao contrário do que se
passa à nossa escala, onde essas grandezas assumem
um contínuo de valores. Um exemplo clássico
é o da luz, que à escala macroscópica
aparece como uma onda electromagnética contínua
e a uma escala submicroscópica é emitida e absorvida
em quantidades discretas, ou quanta (os “fotões”).
Do ponto de vista matemático, a constante de Planck
é apenas mais uma variável, não sendo
o seu valor uma constante universal. Na realidade, existem
várias teorias matemáticas de quantização.
Numa dessas teorias, chamada quantização por
deformação, a constante de Planck surge como
uma variável que permite deformar a geometria clássica
(que corresponde aqui ao valor nulo da constante de Planck)
em geometrias ditas não-comutativas (onde a constante
de Planck é não nula). O grau de não-comutatividade
da geometria é, pois, medido pelo valor da constante
de Planck. Podemos então “brincar” com
o seu valor verificando qual é o seu efeito nas propriedades
geométricas do espaço. Na verdade, é
possível que isto seja bastante mais do que uma “brincadeira”
matemática: nos últimos anos surgiram várias
teorias físicas promissoras onde a constante de Planck
é variável.
Qual a relevância da estética
na formulação de uma teoria científica?
A estética tem um papel fundamental na formulação
de uma teoria científica. Há muito que deixámos
de pensar na ciência como uma mera descrição
de uma realidade positiva que existe para lá de nós.
A ciência não é uma mera acumulação
de factos e verdades absolutas. Como explicou Thomas Kuhn
há muitos anos, a ciência é feita de paradigmas,
e estes são fortemente influenciados por factores não-racionais,
entre eles a estética. Um paradigma permanece válido
enquanto não houver dados experimentais que o invalidem.
Quando a acumulação de contradições
e dados experimentais não explicados pelo paradigma
em vigor passam os níveis aceitáveis, começam
a surgir novos paradigmas para os explicar. A passagem e a
escolha de um novo paradigma entre os vários paradigmas
propostos envolve os tais factores não-racionais, onde
a estética tem um papel relevante.
Em Matemática, os paradigmas também se sucedem.
Embora um paradigma matemático não seja invalidado
pela experiência, a necessidade de novos paradigmas
surge quando não se conseguem demonstrar resultados
que se acreditam ser verdadeiros (as “conjecturas”)
ou quando se exploram outras vias (“novos teoremas”).
Mais uma vez, a estética e outros factores não-racionais
tem aqui um papel relevante, levando a que entre os muitos
paradigmas propostos apenas alguns sobrevivam.
Há verdades que nos transcendem?
Durante muito tempo pensou-se que era possível reduzir
toda a Matemática a um conjunto simples de premissas,
aceites por todos, e a partir das quais poderíamos,
através das regras da lógica, deduzir todas
os resultados (“teoremas”) da Matemática.
Uma das descobertas mais surpreendentes da Matemática
do século passado, devida ao matemático Kurt
Gödel, foi a de que em qualquer sistema axiomático
interessante é possível fazer afirmações
às quais não é possível atribuir
um valor lógico, i.e., não é possível
decidir se essas afirmações são verdadeiras
ou falsas. O Teorema de Gödel mostra, por assim dizer,
que em qualquer teoria matemática com o mínimo
de profundidade existem sempre afirmações que
verdadeiramente nos transcendem!
O que é a solidão científica?
Para um matemático a solidão científica
transparece a vários níveis.
Antes de mais há a solidão que resulta da falta
de reconhecimento social. Um músico, um pintor, um
escultor, podem ver os seus trabalhos apreciados por leigos
e dessa forma serem reconhecidos pela sociedade em geral.
Muitos dos mais belos resultados matemáticos, tais
como a Conjectura de Poincaré ou a Hipótese
de Riemann, só podem ser apreciados por poucos pois
exigem um elevado grau de sofisticação. Ás
vezes, mesmo demonstrações de resultados simples
como o Teorema de Fermat (que pode ser explicado a alguém
com conhecimentos elementares de Matemática) requerem
um grau de sofisticação tal que só podem
ser verdadeiramente apreciados por um número reduzido
de matemáticos.
Depois há a solidão que resulta do facto da
investigação em Matemática ser, na sua
maior parte, um trabalho de natureza individual. É
certo que muitos matemáticos desenvolvem colaborações
com outros matemáticos, ou até com outros cientistas.
Mas essas colaborações envolvem normalmente
não mais do que duas ou três pessoas, o que dilui
muito pouco essa solidão. E a minha experiência
mostra que mesmo nessas colaborações, em grande
parte desenvolvidas à distância, por e-mail,
existe uma grande dose de trabalho solitário.
Há, finalmente, a solidão científica
que resulta do carácter frequentemente pouco aplicado
da investigação em Matemática. Para um
físico, um químico ou um biólogo, a solidão
científica pode ser compensada pelo facto de os seus
resultados poderem encontrar aplicações práticas
imediatas, algo que na grande maioria das vezes não
acontece em Matemática, mesmo com os resultados mais
significativos.
Um matemático quando chega a casa ao final do dia talvez
não possa descrever à companheira ou ao companheiro
como foi o seu dia. Mas essa solidão científica
é largamente compensada pelo prazer de compreender
construções complexas e belas, pela emoção
da descoberta, e pela excitação de explorar
novos mundos. |