Patrícia Beldade
"É importante que se reconheça
o enorme potencial das técnicas de manipulação
genética e o seu impacto no domínio científico,
médico e económico."
Que sabedoria se encontra nos desenhos
das asas das borboletas?
Os padrões de cores que decoram as asas das borboletas
são um dos exemplos mais espectaculares de variação
morfológica no mundo vivo. A diversidade de cores é
enorme e existe a vários níveis: entre espécies,
entre populações da mesma espécie, entre
machos e fêmeas duma mesma população,
entre indivíduos do mesmo sexo e até entre asas
num mesmo indivíduo. Ao mesmo tempo, porque se formam
numa camada de células única, os padrões
das asas são relativamente simples em comparação
com estruturas tri-dimensionais e por isso bastante acessíveis
a experimentação. Desta forma, as asas das borboletas
são um sistema muito adequado para tentar integrar
métodos e conceitos de diferentes áreas da biologia
(genética, desenvolvimento, evolução)
na procura dum entendimento detalhado dos mecanismos subjacentes
à variação biológica. Este entendimento
é um dos principais desafios da investigação
contemporânea na área da biologia.
Quais as limitações do
poder criador da Natureza?
Na minha opinião esta pergunta, posta assim duma forma
tão geral, ultrapassa o que a Ciência pode pretender
responder. Com base nas formas biológicas que existem
ou existiram, e no nosso conhecimento dos processos que geram
essas formas podemos fazer predições de quais
as formas prováveis e quais as que parecem “impossíveis”.
Estas predições, no entanto, dificilmente podem
ser extrapoladas para uma escala temporal infinita, já
que dependem da variabilidade genética existente no
tempo presente e das condições ambientais em
que essa variabilidade é expressa. Predições
a tempo infinito, porque escapam à possibilidade de
ser testadas por experimentação, um passo fundamental
no processo científico, são portanto mais interessantes
do ponto de vista filosófico ou teológico e
menos do científico.
Claro que com base na observação e no conhecimento
de leis (mais ou menos) universais, é possível
identificar o que possam parecer “limitações
do poder criador da Natureza”. Organismos como um elefante
capaz de voar com asas de mosca, por exemplo, são uma
impossibilidade da física, pelo menos no ambiente que
conhecemos que é o do planeta Terra. No entanto, limitações
ou constrangimentos como este são, na minha opinião,
de alguma forma triviais e menos interessantes do ponto de
vista da investigação científica na área
da biologia. Um outro exemplo que não é imediatamente
explicável com base em conhecidas leis da física
é o das patas das centopeias. Diferentes espécies
podem ter um número diferente de pares de patas mas
esse número é invariavelmente impar. Resta saber
se esta observação é o resultado duma
qualquer limitação imposta pela forma como o
desenvolvimento das patas se faz, do facto da selecção
natural dar vantagem a indivíduos com um número
ímpar de pares de patas ou se simplesmente alterações
genéticas que levam à produção
de números pares nunca terem aparecido ou sido mantidas
na natureza. Como este há outros exemplos, mas, na
realidade, a observação da enorme diversidade
biológica existente à nossa volta sugere mais
um quase inesgotável “poder criador da Natureza”
do que a existência de grandes “limitações”.
Qual a ligação entre
a alteração genética e a variação
morfológica?
Da mesma forma que nem todas as variações morfológicas
resultam de alterações genéticas, as
alterações genéticas também não
têm necessariamente de produzir variações
morfológicas nos animais em que surgem. Muitas das
alterações na sequência do ADN, as chamadas
mutações neutras, não resultam em alterações
visíveis e muitas outras, porque são letais,
acabam também por não contribuir para a variabilidade
na população em que surgem. Mas algumas, claro,
levam à produção de organismos com “formas
diferentes” que, se sobreviverem e se reproduzirem melhor
no ambiente em que vivem, acabarão por aumentar em
frequência e eventualmente até substituir as
formas que eram inicialmente mais comuns. Geralmente, claro,
em vez da situação “extrema” de
formas novas que completamente substituem outras, o que temos
é um enorme número de formas mais ou menos diferentes
que coexistem numa mesma população. Assim, a
variação nas formas (morfológicas ou
outras, como comportamentais ou fisiológicas) e no
material genético são uma característica
universal em populações naturais. Um dos exemplos
desta variação entre indivíduos que nos
é mais próximo é o da susceptibilidade
para contrair certas doenças. Para esta característica,
como para todas, as diferenças inter-individuais podem
resultar de variações genéticas mas também
do ambiente e da forma como o ambiente regula a informação
contida no material genético (o ADN). O entendimento
dos mecanismos que levam à produção de
variação é, cada vez mais, um objectivo
central da biologia moderna.
Que mecanismos genéticos estão
na origem da selecção sexual?
Apesar deste assunto ter interessado biólogos desde
há muito, pouco se sabe dos mecanismos genéticos
envolvidos na selecção sexual. Na maior parte
dos animais, enquanto os machos competem entre si por acesso
a fêmeas, às fêmeas cabe a tarefa de escolher
entre os machos disponíveis aquele que tem maiores
possibilidades de produzir descendência “capaz”.
Os comportamentos envolvidos nas diferentes etapas destes
dois processos são distintos, como poderão ser
os mecanismos genéticos que os determinam. Alguns dos
genes responsáveis pela competição entre
machos (e.g. genes envolvidos na produção de
testosterona), pelo seu cortejo às fêmeas (e.g.
mutações no gene fruitless da mosca
do vinagre produzem cortejos alterados) e pela escolha final
desta (e.g. genes envolvidos na percepção de
sinais visuais, auditivos ou de olfacto emitidos durante o
cortejo) são já conhecidos em casos específicos,
mas estamos longe de ter uma dissecção completa
das bases genéticas da selecção sexual.
Esta é, no entanto, uma área de grande interesse
actual.
Qual a sua posição
sobre a manipulação genética?
Uma posição cuidadosa mas sobretudo não
fundamentalista. A introdução de material genético
duma espécie noutra é um fenómeno que
ocorre na natureza. Avanços tecnológicos e conceptuais
das últimas décadas permitiram ao Homem explorar
este tipo de fenómeno e desenvolver técnicas
para, de alguma forma, “controlar” a natureza
em seu benefício. A manipulação genética
de produtos agrícolas e pecuários é central
na produção alimentar actual. Por exemplo, a
inclusão de resistência a pesticidas em cultivares
permite que se possam usar estes produtos para eliminar “ervas
daninhas” sem destruir as plantas de interesse. Claro
que há que ter cuidado para que tal estratégia
não conduza ao abuso dos pesticidas que poderiam ter
efeitos nefastos quer na natureza (e.g. “inundando”
os campos destes produtos) quer nas pessoas (que no final
ingerem as plantas tratadas). A absoluta necessidade deste
tipo de cuidados, tão fundamentais quando se faz manipulação
genética, é particularmente “mediática”
quando se trata de manipulação que afecta o
Homem directamente. A comunidade científica, como a
sociedade em geral, é sensível a este tipo de
preocupação e geralmente reconhece a necessidade
de mecanismos reguladores como o são comissões
de bioética e regras internacionais de “conduta
experimental”. Mas é importante que não
se caia no “fundamentalismo anti-manipulação”
fácil e, frequentemente, desinformado, e que se reconheça
o enorme potencial das técnicas de manipulação
genética e do seu impacto no domínio científico,
médico e económico. |