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#12 | 17 Outubro 05
 

53 anos de idade, Professor Associado no Departamento de Arquitectura da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra, licenciado em História, mestre em História da Arte e doutorado em História da Arquitectura, autor de quatro livros e algumas dezenas de artigos nas áreas da arquitectura e da arte, publicados em Portugal e noutros países, em português, em inglês e francês.
Director – ou editor principal – de um projecto de revista académica de história e teoria da arquitectura, bilingue (português / inglês), a publicar pela Imprensa da Universidade de Coimbra no final de 2005, produzido inteiramente com recurso a financiadores não-estatais, a enviar gratuitamente a dezenas de centros universitários de excelência na Europa, na Ásia e na América.

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Paulo Varela Gomes
“O pior de Portugal é a construção legal, não a ilegal.”

Porque é que um estudioso de arquitectura vive no campo?
Pelas mesmas razões de qualquer estudioso que decida não viver na cidade. No meu caso foi a Índia. Depois de várias viagens e de viver lá dois anos, percebi que precisava de ter horizonte e de lavar os olhos por dentro. E também de silêncio à minha volta, não o silêncio da ausência de barulho mas o silêncio do movimento lento das coisas.
É claro que viver junto ao mar também servia, mas isso é muito difícil em Portugal onde a costa está devastada, exceptuando o Alentejo que fica longe do sítio onde trabalho.
A arquitectura e a cidade, essas, são para se ir lá de vez em quando. Gosto mais de uma grande cidade desde que vivo no campo. Estar ali no caos urbano parece-me menos uma fatalidade e mais uma escolha. O prazer é dobrado. E gosto da snobeira de vir de Paris para Podentes (que é onde vivo).
Viver no campo não é fugir das cidades portuguesas. É verdade que estas são muito feias, muito pobres, muito provincianas, muito desleixadas, Lisboa e Coimbra as piores de todas (ainda que por razões diferentes).
Mas o campo, em Portugal, não é melhor: sujo, desordenado, abandonado. Safa-se o sítio onde vivo e alguns mais, poucos (e também Trás-os-Montes, a Beira raiana, o Alentejo).
Do ponto de vista do território e da civilização urbana, Portugal é um sítio irremediavelmente perdido. Pode melhorar muito mas, por mais que melhore, será sempre muito pior do que poderia ser se o Estado Novo e o regime actual não tivessem dado cabo dele.
Viver no campo não tem nada que ver com isso. Emigrar é que tem – a opção não está fora dos meus horizontes, pelo contrário.

Podemos referenciar tipologias na construção ilegal em portugal?
O pior de Portugal é a construção legal, não a ilegal. O pior são as urbanizações, essas extensões semi-urbanas de todas as periferias e todos os centros onde as ruas são estreitas demais, os passeios reduzidos ao mínimo, os edifícios beras e mal assumidos, as pracetas ridículas e há automóveis por cima de tudo isto.
O pior é também o desastre a que se deixou chegar as grandes áreas construídas (legais, pois então) pelos nossos antepassados distantes e próximos desde os chamados centros históricos até aos bairros do Estado Novo. Tudo foi abusivamente ocupado e desfeado por carros a mais, espaço público a menos, gosto nulo.
Safam-se Guimarães, Viseu, Vila do Conde, o centro do Porto, de Évora, de Braga, de Aveiro.
A construção ilegal, sejam os bairros ditos “de lata”, sejam as muitas casas de legalidade duvidosa um pouco por todo o país, é tão má e tão pouco urbana como a maior parte da construção legal nova. E, como esta, é muito conservadora tipologicamente: moradias com o antigo piso térreo do gado e das alfaias transformado em garagem e sala para os homens entrarem de botas cheias de lama deixando a lama e as garrafas de cerveja vazias para as mulheres limparem. Casinhas de sala comum e quarto para as raparigas dando para ruelas caboverdianas sem sol nem alegria. Pisos acrescentados à margem do PDM a prédios de luxo que só têm o luxo dos novos ricos (os acabamentos e os equipamentos) e nenhum luxo novo: espaço e criatividade.

A identidade portuguesa já estava impressa no manuelino?
No tempo de D. Manuel a Corte portuguesa falava tanto castelhano como português e o rei ambicionava tornar-se rei de toda a Hespanha (com H, ou seja, a Ibéria). A arquitectura era muito mais parecida com a arquitectura de Castela, da Andaluzia ou de Aragão do que aquilo que se diz. D. Manuel e a sua Corte, como a Corte dos Reis Católicos, admiravam o gosto mourisco de Granada, Córdova e Fez.
Depois de D. Manuel a arquitectura do sul de Portugal mudou acentuadamente de gosto. Mas talvez não a arquitectura desse outro Portugal que se situa do Vouga para norte, e que é uma Galiza do sul (ou a Galiza é que é um Entre Douro e Minho do norte).
A ideia de Portugal como país foi inventada no século XVI mas as ideias de nação e identidade são do século XIX – precisamente a época em que um estudioso brasileiro ao serviço de um príncipe consorte alemão inventou, em Lisboa, a palavra e o conceito de manuelino.
O século XX herdou a obsessão identitária dos liberais e deu-lhe duas expressões: o Estado Novo inventou a “casa portuguesa” e as arquitecturas cheias de sinais do manuelino e de D. João V. A esquerda inventou as arquitecturas regionais, verdadeiras, autênticas e enraizadas.
De facto, é difícil falar de identidade entre granito e calcário, pedra e betão, madeira e telha, planície e montanha, chuva e sequeiro, caminhos de cabras e auto-estradas, raianos e estremenhos, algarvios e andaluzes, cabo-verdianos e moldavos.

A história, repete-se?
Primeiro como tragédia, depois como farsa, dizia Marx. Ou seja, as coisas acontecem uma vez e depois acontecem outra vez mas com consequências inversas.
A história não faz senão repetir-se porque é entrópica. As mudanças são compensadas por contra-mudanças, aquilo que se ganha aqui, perde-se acolá, a felicidade que parece ter mais condições para florescer é contrabalançada por novas formas de infelicidade, à saúde e à longevidade opõem-se novas doenças e vidas menos intensamente vividas, a melhoria da capacidade de comunicar transporta consigo uma muito maior estreiteza daquilo que se comunica, o entretenimento constante paga-se com a ausência de silêncio.
A única coisa que muda de facto é que o planeta tem cada vez mais seres humanos e que estes vivem mais tempo.
Não é uma mudança positiva para o planeta e todos os seres vivos que nele habitam e, por isso, será – tem sido – por vezes corrigida com a maior das brutalidades.

O que pode renascer das cinzas?
Escrevi uma vez que a última coisa a morrer não é a esperança mas a raiva. É que, mesmo que a esperança morra, a capacidade de nos olharmos ao espelho sem vergonha, individual ou colectiva, depende da capacidade de, com raiva, insistirmos em viver dignamente no território físico onde vivemos e no território histórico, ou seja, entre aqueles que nos antecederam e aqueles que são nossos vizinhos na circunstância histórica.
O que pode renascer das cinzas é a tranquilidade de habitar Portugal e habitar as leis portuguesas sem vergonha. Basta para isso que tenhamos raiva.

 

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