Paulo Varela Gomes
“O pior de Portugal é a construção
legal, não a ilegal.” Porque
é que um estudioso de arquitectura vive no campo?
Pelas mesmas razões de qualquer estudioso que decida
não viver na cidade. No meu caso foi a Índia.
Depois de várias viagens e de viver lá dois
anos, percebi que precisava de ter horizonte e de lavar os
olhos por dentro. E também de silêncio à
minha volta, não o silêncio da ausência
de barulho mas o silêncio do movimento lento das coisas.
É claro que viver junto ao mar também servia,
mas isso é muito difícil em Portugal onde a
costa está devastada, exceptuando o Alentejo que fica
longe do sítio onde trabalho.
A arquitectura e a cidade, essas, são para se ir lá
de vez em quando. Gosto mais de uma grande cidade desde que
vivo no campo. Estar ali no caos urbano parece-me menos uma
fatalidade e mais uma escolha. O prazer é dobrado.
E gosto da snobeira de vir de Paris para Podentes (que é
onde vivo).
Viver no campo não é fugir das cidades portuguesas.
É verdade que estas são muito feias, muito pobres,
muito provincianas, muito desleixadas, Lisboa e Coimbra as
piores de todas (ainda que por razões diferentes).
Mas o campo, em Portugal, não é melhor: sujo,
desordenado, abandonado. Safa-se o sítio onde vivo
e alguns mais, poucos (e também Trás-os-Montes,
a Beira raiana, o Alentejo).
Do ponto de vista do território e da civilização
urbana, Portugal é um sítio irremediavelmente
perdido. Pode melhorar muito mas, por mais que melhore, será
sempre muito pior do que poderia ser se o Estado Novo e o
regime actual não tivessem dado cabo dele.
Viver no campo não tem nada que ver com isso. Emigrar
é que tem – a opção não
está fora dos meus horizontes, pelo contrário.
Podemos referenciar tipologias na construção
ilegal em portugal?
O pior de Portugal é a construção legal,
não a ilegal. O pior são as urbanizações,
essas extensões semi-urbanas de todas as periferias
e todos os centros onde as ruas são estreitas demais,
os passeios reduzidos ao mínimo, os edifícios
beras e mal assumidos, as pracetas ridículas e há
automóveis por cima de tudo isto.
O pior é também o desastre a que se deixou chegar
as grandes áreas construídas (legais, pois então)
pelos nossos antepassados distantes e próximos desde
os chamados centros históricos até aos bairros
do Estado Novo. Tudo foi abusivamente ocupado e desfeado por
carros a mais, espaço público a menos, gosto
nulo.
Safam-se Guimarães, Viseu, Vila do Conde, o centro
do Porto, de Évora, de Braga, de Aveiro.
A construção ilegal, sejam os bairros ditos
“de lata”, sejam as muitas casas de legalidade
duvidosa um pouco por todo o país, é tão
má e tão pouco urbana como a maior parte da
construção legal nova. E, como esta, é
muito conservadora tipologicamente: moradias com o antigo
piso térreo do gado e das alfaias transformado em garagem
e sala para os homens entrarem de botas cheias de lama deixando
a lama e as garrafas de cerveja vazias para as mulheres limparem.
Casinhas de sala comum e quarto para as raparigas dando para
ruelas caboverdianas sem sol nem alegria. Pisos acrescentados
à margem do PDM a prédios de luxo que só
têm o luxo dos novos ricos (os acabamentos e os equipamentos)
e nenhum luxo novo: espaço e criatividade.
A identidade portuguesa já estava
impressa no manuelino?
No tempo de D. Manuel a Corte portuguesa falava tanto castelhano
como português e o rei ambicionava tornar-se rei de
toda a Hespanha (com H, ou seja, a Ibéria). A arquitectura
era muito mais parecida com a arquitectura de Castela, da
Andaluzia ou de Aragão do que aquilo que se diz. D.
Manuel e a sua Corte, como a Corte dos Reis Católicos,
admiravam o gosto mourisco de Granada, Córdova e Fez.
Depois de D. Manuel a arquitectura do sul de Portugal mudou
acentuadamente de gosto. Mas talvez não a arquitectura
desse outro Portugal que se situa do Vouga para norte, e que
é uma Galiza do sul (ou a Galiza é que é
um Entre Douro e Minho do norte).
A ideia de Portugal como país foi inventada no século
XVI mas as ideias de nação e identidade são
do século XIX – precisamente a época em
que um estudioso brasileiro ao serviço de um príncipe
consorte alemão inventou, em Lisboa, a palavra e o
conceito de manuelino.
O século XX herdou a obsessão identitária
dos liberais e deu-lhe duas expressões: o Estado Novo
inventou a “casa portuguesa” e as arquitecturas
cheias de sinais do manuelino e de D. João V. A esquerda
inventou as arquitecturas regionais, verdadeiras, autênticas
e enraizadas.
De facto, é difícil falar de identidade entre
granito e calcário, pedra e betão, madeira e
telha, planície e montanha, chuva e sequeiro, caminhos
de cabras e auto-estradas, raianos e estremenhos, algarvios
e andaluzes, cabo-verdianos e moldavos.
A história, repete-se?
Primeiro como tragédia, depois como farsa, dizia Marx.
Ou seja, as coisas acontecem uma vez e depois acontecem outra
vez mas com consequências inversas.
A história não faz senão repetir-se porque
é entrópica. As mudanças são compensadas
por contra-mudanças, aquilo que se ganha aqui, perde-se
acolá, a felicidade que parece ter mais condições
para florescer é contrabalançada por novas formas
de infelicidade, à saúde e à longevidade
opõem-se novas doenças e vidas menos intensamente
vividas, a melhoria da capacidade de comunicar transporta
consigo uma muito maior estreiteza daquilo que se comunica,
o entretenimento constante paga-se com a ausência de
silêncio.
A única coisa que muda de facto é que o planeta
tem cada vez mais seres humanos e que estes vivem mais tempo.
Não é uma mudança positiva para o planeta
e todos os seres vivos que nele habitam e, por isso, será
– tem sido – por vezes corrigida com a maior das
brutalidades.
O que pode renascer das cinzas?
Escrevi uma vez que a última coisa a morrer não
é a esperança mas a raiva. É que, mesmo
que a esperança morra, a capacidade de nos olharmos
ao espelho sem vergonha, individual ou colectiva, depende
da capacidade de, com raiva, insistirmos em viver dignamente
no território físico onde vivemos e no território
histórico, ou seja, entre aqueles que nos antecederam
e aqueles que são nossos vizinhos na circunstância
histórica.
O que pode renascer das cinzas é a tranquilidade de
habitar Portugal e habitar as leis portuguesas sem vergonha.
Basta para isso que tenhamos raiva.
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