Trouxe comigo o espinho essencial de ser consciente,
A vaga náusea , a doença incerta, de me sentir
Álvaro de Campos, Vilegiatura
Que a vida, a própria vida, tenha um aspecto é algo que
a maior parte das pessoas terá dificuldade em compreender (julgo eu,
mas não conheço a maior parte das pessoas). A vida, considerada
em si mesma, quer dizer, o simples acontecer das coisas e de nós mesmos,
é pouco mais que o nada. Aliás, é precisamente o que
vem logo a seguir ao nada, e é depois (sobre ela ou nela) que todas
as coisas significativas acontecem. A vida em si mesma tende, portanto, a
não ser sequer considerada preocupados como estamos com a variedade
de coisas que se passam nela ou, o que é o mesmo, a ser tida
como um âmbito de acontecimentos neutro, espaço ou horizonte
onde ocorrem coisas, mas que em si mesmo não tem rosto nem aspecto.
A vida é, assim, como um meio transparente, água limpa que pode
ser atravessada e habitada por muitas coisas, tanto boas como más,
que pode correr, como dizemos, bem ou mal, mas que em si mesma é precisamente
como a água insípida, incolor e inodora.
A tonalidade que por vezes a invade a vida é dura, a vida é
fácil... parece derivar das venturas ou desventuras, quer dizer,
do arbítrio dos acontecimentos, de modo que o juízo que sobre
ela recai decorre dos casos particulares. Também por essa razão
o tom da vida pode mudar, rapidamente e sem prévio aviso, e mudar ao
ritmo da vicissitude: pode num instante deixar de ser sombrio para se tornar
claro e deixar depois de ser assim para readquirir o cinzento do quotidiano.
A vida pode, portanto, admitir muitas formas, como o mar, mas em si mesma
é informe e anónima como o mar.
É normal que não estejamos atentos à vida porque habitualmente
encontramo-nos entretidos com o que ela nos oferece. A vida seria um tédio
se não tivéssemos nada para fazer. Ela encarrega-se, assim,
de nos arranjar coisas para nos ocupar. Demonstra com isso a sua astúcia:
entretem-nos com tarefas e dispensa-nos da tarefa de a encarar de frente,
de procurar discernir o seu rosto. A vida tem manha: distrai-nos com muitos
problemas para que ela própria não se torne num problema. Esconde-se
atrás do que nos dá.
E, no entanto, quando observada com atenção, a vida parece ter
um aspecto. Parece, aliás, ter mau aspecto, estar com má cara,
ter um rosto doentio. O sintoma mais óbvio é o de, a despeito
de tudo o mais, a vida ser habitualmente uma atarefada e distraída
correria em direcção à morte. É certo que vivemos
também na tendência, quase incurável, de pensar que a
morte não é um sintoma da doença da vida porque colocamos
a morte no fim da vida, de modo que o "espaço" que ainda
nos separa dela não está contaminado pela morte. O que é
um estratagema hábil, que nos permite acordar, viver e dormir tranquilos
sem pensar. Como se o fim não fosse o fim disto, no duplo sentido.
De facto, o fim pertence ao processo. Isto, a vida, tende por si mesma para
o seu próprio fim, consome-se e gasta-se ao executar-se, como a cera
de uma vela se gasta enquanto ilumina, de modo que a pouca luz que lança
(ainda que lance alguma) é o acto mediante o qual se desfaz. O facto
de a morte ser o fim da vida não mantém a vida incólume
da morte, mas, pelo contrário, transforma-a numa mais ou menos lenta
agonia. A vida é uma agonia, por vezes com desfecho fulminante, outras
vezes arrastando-se penosa ou alegremente. Podemos estar frenética
e apaixonadamente a gozar o prazer de viver, acorrendo vibrante e entusiasmadamente
a muitas coisas, que tudo isso é um mero epifenómeno de uma
doença que, precisamente por ter momentos felizes, é levada
a esquecer-se de si, a disfarçar-se.
Assim, o mais grave sintoma da doença de estar vivo é especialmente
grave porque se apresenta sob a ilusão do seu contrário, como
se a vida fosse o oposto da morte, quando é apenas o caminho que inevitavelmente
lá conduz. É, de facto, curioso, mas o caminho para a morte
parece ter a consistência e o aspecto de vida. "Nasceu não
escapa", diziam os antigos. Julgamos habitar um tempo de vida, mas o
espaço que percorremos é de morte.
O facto de a região que percorremos estar contaminada pela morte não
converte a vida apenas num "vale de sombras", como se a morte fosse
somente uma nuvem espessa que cobre e se acrescenta às muitas coisas
que fazemos. Pelo contrário: parece que as coisas que fazemos habitualmente
têm um carácter doentio, no seu frenesim inquieto. Corremos à
procura de qualquer coisa e se o que encontrarmos é o mero fim da própria
correria, o acto de correr é louco e vão. Enquanto a morte for
um abismo, a vida, seja ela de que tipo for, será uma anedota de mau
gosto. Por isso, o desejo que nos move e nos leva de um lado para outro parece
ser o passo doentio e inquieto de um animal enjaulado pelo nada. Só
permanece a ilusão de haver qualquer coisa, de persistir algum significado.
Se o fim é o nada, isso de que o nada é o fim já é
nada. E a vida torna-se uma convulsão no vazio.
O que nos liberta do reconhecimento deste estado de coisas não é
o facto saudável de possuirmos, pelo nascimento, uma cura para ele,
mas o simples acontecimento da inconsciência. Andamos com segurança,
perseguindo objectivos de validade a prazo, mas inconscientes do simples facto
de estarmos vivos. A lucidez da doença arrastaria a angústia.
Salva-nos a miopia de não nos enxergarmos com clareza, de apenas e
vagamente nos pressentirmos, para logo enxotar o inconveniente pressentimento.
De que serve, todavia, a lucidez? Não seria melhor, afinal, possuir
a felicidade do "homem marçano,/Que tem a sua tarefa quotidiana
normal, tão leve ainda que pesada,/Que tem a sua vida usual,/Para quem
o prazer é prazer e o recreio é recreio,/Que dorme sono,/Que
come comida/Que bebe bebida, e por isso tem alegria!"1
? Se toda a lucidez apenas trouxesse consigo o reconhecimento da doença
da vida, não seria preferível a estupidez da insconsciência?
Se amanhã morreremos, não seria melhor dedicarmo-nos a comer
e a beber? E, no entanto, estas são as perguntas do desespero. Um dos
males da vida é a inconsciência dos seus males: sentir-se bem
é uma ilusão perigosa, não porque seja sentir-se bem,
nem só porque a verdade é que se está mal, mas
sobretudo, talvez essencialmente, porque isso impede a procura da cura. O
diagnóstico não vale por si, mas por ser condição
prévia da eficácia da terapia. O problema é, porém,
grave porque, neste caso, a doença é a própria vida,
isto é tudo. Não se trata de uma debilidade parcelar,
que apenas afecta zonas ou regiões da existência. A debilidade
é a própria existência. O que está impedido e afectado
é a vida mesma.
Sabemos, no entanto, alguma coisa quanto à terapia a procurar. Sabemos,
por exemplo, que a terapia deve ser, por assim dizer, "totalitária",
ou seja, que nenhuma coisa imanente à vida pode ser a cura para a totalidade
da vida. Sabemos também que o esplendor das coisas é "curto
demais" para as redimir, que não basta, e que apenas acrescenta
à doença um outro sintoma e grave a doce melancolia da
beleza da vida. A cura deve ser mais radical que a beleza. Tem de tocar no
nervo mesmo da existência vivida, tem de possuir forma de vida,
salvá-la toda, incluir o quotidiano e o heróico, o grande e
o pequeno, o vulgar e o fantástico. Parece, de facto, que não
estamos em condições de "deduzir" as formas concretas
da terapia (e muito menos de a executar somente por nós próprios,
a partir dos recursos imediatamente à nossa disposição),
mas podemos pelo menos, se quisermos, reconhecer a sua necessidade e a sua
pertinência (ou o seu contrário) quando e se nos for oferecida.
O que, se não permite que nos curemos a nós próprios,
não nos remete, no entanto, para uma paralisia completa.
1 ÁLVARO DE CAPOS, Mestre, meu mestre querido