Os portugueses vivem em
permanente representação, tão obsessivo é
neles o sentimento de fragilidade íntima inconsciente e a correspondente
vontade de a compensar com o desejo de fazer boa figura, a título
pessoal ou colectivo. A reserva e a modéstia que parecem constituir a
nossa segunda natureza escondem na maioria de nós uma vontade de exibição
que toca as raias da paranóia, exibição trágica,
não aquela desinibida, que é característica de sociedades
em que o abismo entre o que se é e o que se deve parecer não atinge
o grau patológico que existe entre nós.
Eduardo Lourenço, O Labirinto da Saudade
Apesar de todas as mudanças que os últimos 30 anos trouxeram a
Portugal, houve uma coisa, profunda e movediça, que parece ter-se mantido
inalterável: a infatigável resistência à mudança,
acompanhada sempre por uma obstinada necessidade de aparentar progresso,
da sociedade portuguesa. Veja-se a Expo 98, ou o Euro 2004 que se aproxima,
e perceba-se até que ponto estes acontecimentos exuberantes e ostensivos,
que servem para demonstrar que os portugueses também conseguem
organizar extraordinários eventos, são contemporâneos da
insuperável incapacidade de sair do sub-desenvolvimento social e cultural
crónico onde nos arrastamos há, ouso dizer, milhares de semanas.
Compare-se com o acontecimento-chave do Estado Novo, a Exposição
do Mundo Português de 1940: salvaguardadas as devidas distâncias,
o sintoma é o mesmo. Já agora, prosseguindo a aritmética,
multiplique-se o sintoma pelos inúmeros outros exemplos que quotidianamente
saltam pelas janelas da informação como se fossem novidades escandalosas,
do tipo estudo da União Europeia revela que os portugueses vivem
acima das suas possibilidades ou a população da Lagoa
Seca acolheu em festa os novos submarinos da armada portuguesa. Por trás
de uma enorme fachada de desenvolvimento tecnológico e social importado,
as raízes de uma mentalidade do tipo feudal, baseada na predominância
de algumas famílias e de toda uma horda de caciques, que se assumem como
donos das instituições públicas e que alimentam um sistema
de ascenção social e económica baseado em esquemas de favores
em cadeia, continuam fortemente implantadas. Enfim, foi a partir deste trágico
desencontro entre o ser e o parecer que nasceu a ideia para a elaboração
da Ópera do Falhado, comédia musical que serve aqui
de pretexto a algumas considerações à volta dessa disposição
mental que parece persistir ferozmente no nosso belo país.
Talvez pela maldição que alguns nomes parecem inspirar, a Ópera
do Falhado esteve quase para falhar, ou seja, ficar pela gaveta. Tal não
aconteceu mas, em contrapartida, o seu brevíssimo período de apresentações
não a tornou, mal ou bem, grandemente conhecida, o que justifica fazer
aqui uma pequena descrição da génese do empreendimento,
com intenção meramente ilustrativa (longe, palavra de honra, de
a querer impingir a promotores de espectáculos extremamente audazes que
venham a ler este artigo). Primeiro que tudo, é preciso esclarecer porque
é que se chama a uma ópera sobre Portugal a Ópera
do Falhado: será a mera e costumeira maledicência endémica?
Será que a forma mais intuitiva e imediata de encarar este país
é através da mais desbragada iconoclastia? Será que promover
todos os portugueses à condição de falhados ajuda quem
o promove a se sentir mais adaptado, melhor? Talvez. Mas o falhado que se evoca
nesta ballad opera não é igual ao da tipologia norte-americana
o inadaptado que não consegue ascender socialmente- pelo contrário,
trata-se aqui de personagens que estão perfeitamente enquadradas na comunidade
em que vivem e, por isso mesmo, agem em conformidade com uma cultura social,
esta sim, absolutamente desastrosa. A megalomania que nasce do ressentimento,
o facilitismo mágico, o porreirismo criminal, a fragilidade emocional
e, acima de tudo, a doentia necessidade de parecer bem, atravessam quase todos
os personagens desta comédia, onde o elemento trágico não
é mais do que a insatisfação perene a que todo esse comportamento
os conduz.
Para atestar da coerência do trabalho, veja-se o drama do criador e como
este se transforma na trama dramática da sua própria criação:
como bom português médio, adulto mais ou menos jovem, boémio,
romântico, sem espírito prático, sem um tostão, com
a vida toda por organizar e sempre na busca incansável de novos sarilhos
para esquecer os já estabelecidos, o criador resolve, de uma penada,
que o melhor a fazer nestas condições é... uma ópera.
Reconhecem o sintoma? O drama pessoal e o colectivo fundem-se então no
doloroso parto de mais uma megalomania, de mais uma exibição extravagante
que remete para debaixo do tapete todos os problemas básicos e fundamentais
que ficam por resolver, mas com uma diferença fundamental: ao pobre criador
cabe-lhe o privilégio de ser ele a criar e a intoxicar-se no processo
de edificar a sua própria ilusão de grandeza. O falhado, em resumo,
não é mais do que este ser, individual e colectivo, que aspira
sempre àquilo que não é, mas que raro ousa transformar-se,
preferindo sempre aparentar, da forma mais exuberante possível, que é
realmente extraordinário.
Como fontes de inspiração e matrizes para a construção
desta peça, estiveram duas bem conhecidas ballad operas: a
Ópera dos Três Vinténs (1928), de Weill / Brecht,
e a Ópera do Malandro (1978), de Chico Buarque de Holanda.
Além do fulgor musical de qualquer uma destas obras, foi a sua linguagem
vernacular e os seus personagens, rasteiros à lama social e
constatemente reveladores da falsa moral e da corrupção das cúpulas
do poder, que suscitou mais forte influência no Falhado. Mais do que construir
um enredo aventuroso ou exaltar silêncios estilísticos, a escolha
das personagens e a tentativa de as inscrever numa tipologia reconhecidamente
lusitana que fosse também plausível de actualidade, embora mantendo
traços de arquétipo, constituiu o trabalho fundamental
para a definição do Falhado enquanto ópera portuguesa.
Assim, o primeiro personagem acaba por ser o local à volta do qual tudo
se desenrola: um Café numa grande cidade, O Inferninho da Baixa,
ruína do esplendor burguês do início do século XX,
pejado de fancarias e anúncios de snack-bar moderno, que nas suas paredes
ainda ostenta teimosamente uns quadros a óleo com alguns fantasmas da história
do país (mais adiante farão a sua aparição), nomeadamente
o belicoso Rei medieval, o casto Ditador de recente memória, a gloriosa
e piedosa Fadista, o discreto Poeta e o imberbe Magala (filho dos donos do café)
que morreu novo, atropelado por um chaimite na Revolução dos Malmequeres.
O pretexto é clássico: um velho estabelecimento comercial tornado
obsoleto pelo progresso, oferece heroicamente resistência a se deixar morrer
ou perverter no insensível torvelinho dos novos tempos, apesar do forte
assédio de desalmados homens de negócios e da iminente ruína
dos seus já idosos próprietários, Afonso e Olga, que há
muitos anos migraram da sua aldeia para a grande cidade de modo a morrer à
fome num sítio mais cosmopolita. Com a sua altiva história pendurada
nas paredes, de costas para o mundo, num finca-pé de Afonso em exaltar
o supremo valor que é ter uma propriedade (o próprio diz que um
homem sem propriedades é como uma propriedade sem homens!), o Inferninho
da Baixa assume-se como um retrato amarelecido de um país arcaico
que, subitamente, se achou no meio da irresistível ascenção
das grandes corporações mundiais de comércio e da sua devastadora
uniformização cultural, vulgo, globalização.
Apesar da aparência humilde, Afonso e Olga são os únicos que
têm realmente algum dinheiro e é com essas economias suadas que todos
os outros vão alimentar os seus grandes planos desengonçados: Ácaro,
o homem de negócios que vai tentar comprar o estabelecimento e que se passeia
pelo clube dos empresários e pelos Ministérios, é um deles
e está praticamente nas lonas depois de gastar a herança familiar.
Henrique Céu de Aviz Castelo-Mayor-Que-O-Do-Outro de Ácaro, diz
ele, é engenheiro financeiro, diz ele, e soube por bastidores obscuros
que um qualquer Ministério se preparava para oferecer uma avultadíssima
maçaroca pelo prédio do Café, de modo a poder depois vendê-lo
ainda mais caríssimo a uma multinacional estrangeira. Ácaro é
uma espécie de Fausto prosaico e materialista, que mesmo na mais constrangedora
fronteira da ruína nunca deixa de se exibir como um génio da finança
e modelo de tecnocrata rico, obstinadamente convencido de que o mundo foi feito
para favorecer os homem da sua estirpe nobiliática: ecce homo falhado.
No café, Ácaro vai encontrar Ícaro, antigo colega de liceu:
Ícaro é um escritor que não escreve, um artista por indefinição
profissional, que espera teimosamenente pelo milagre da iluminação
profunda para poder finalmente revolucionar toda a arte e dar descanso à
sua neurose: o seu romantismo é do tipo do dandy
de Baudelaire, o homem que de tanto querer fazer coisas impossíveis, nunca
perdia tempo a fazer as possíveis ou, como Fernando Pessoa anunciava na
sua Mensagem, alguém que só consegue viver com O
tudo ou o seu nada. Frutos do mesmo sistema de ensino, Ícaro
e Ácaro demonstram com o seu agressivo reencontro que foram feitos para
não ultrapassar as suas diferenças e nunca reconhecer no outro nada
de si próprios: eis o falhanço colectivo, a incapacidade de comunicar
para além do individualismo mais primário e defensivo.
Entre escroques infantilóides que tomam Ácaro como o supremo modelo
das elites vencedoras, meninas ucranianas forçadas à prostituição,
mulheres abusadas em crianças e destruídas para o amor, numa constante
impossibilidade de realizar qualquer coisa de plena e boa com as suas vidas,
eis que os Fantasmas, liderados pelo Ditador (que exalta a ameaça de
eles poderem vir a cair no Grande Esquecimento se os seus quadros desaparecerem),
resolvem começar a exercer a sua influência mágica sobre
a grande desorganização dos vivos, seguindo com afinco a máxima
de O Leopardo e do próprio Ditador de que é
preciso que algo mude para que tudo fique na mesma. Essa mudança
mágica, esse grande sortilégio que faz os falhados sentirem-se
realizados sem terem que mudar nada de fundamental nas suas vidas, foi grandemente
inspirado na análise que o ensaísta Eduardo Lourenço fez
no Labirinto da Saudade à estratégia propagandística
do Estado Novo: à grande miséria civilizacional do povo, contrapôs-se
uma teia de imagens de glórias passadas, habilmente transformadas em
elixir de orgulho e espartilho anti-revolucionário para uma nação
estagnada. Se há coisa que é típica nos ditadores, é
de facto este totalitarismo cultural: totalitarismo entendido enquanto versão
oficial de um povo e da sua história, imposto enquanto verdade total
e impermeável a outras interpretações. Mas os totalitarismos,
tal como os vírus, evoluem, fortalecem-se e adaptam-se aos tempos, visto
que existe sempre, como o Ditador sempre soube, uma Grande Estratégia
para conquistar o mundo, quer seja em nome de Deus ou dos interesses insaciáveis
dos homens tocados pela vertigem do poder. Hábil Chefe de Estado entre
os mortos, o Ditador sabe como agir de acordo com o quadro global e (as pessoas
mudam muito com a morte) até explica aos humildes como é que se
faz política nos dias que correm: As vítimas da pobreza,
da injustiça, da má formação, dos maus tratos e
das drogas, fazem agora parte da Grande Estratégia. A manutenção
dos milhares de milhões de falhados que se arrastam por este mundo é
agora a prioridade do investimento. É um processo muito simples... consiste
em transformá-los a todos em consumidores ávidos, como os frangos
de aviário; mostrar-lhes as glórias do seu passado, as maravilhas
do seu futuro e dar-lhes 15 minutos de fama através da alta tecnologia
lúdica que todos adoram. Depois, com a brevidade possível de modo
a dar lugar a consumidores frescos, conduzi-los para o seu merecido descanso
através das doenças coronárias, venéreas ou alérgicas
que adquirem durante o consumo desenfreado de tudo o que se produz na Grande
Estratégia! Todos contribuem!. Ante tal discurso, a humilde proprietária
do café reage de acordo com o que fazem quase todos os eleitores, ainda
hoje, perante o charme e a demagogia dos politicóides: O senhor
presidente fala tão bem, que eu até sinto que percebo tudo!
Em resumo, o Falhado poderia ser um drama fáustico, visto que os seus personagens
sofrem pela impossibilidade de se transformarem no que sonham, mas acaba por ser
essencialmente uma comédia portuguesa pela forma como todos se satisfazem
em apenas aparentar ser o que gostariam e também pelo modo mágico
e simplista com que tudo se dá por resolvido porreiramente porque já
ninguém tem vontade de discutir mais. Há coisas que não mudam
ou que mudam muito lentamente e só quando existe vontade para tal ou alguma
hecatombe: a Ópera do Falhado procurou ilustrar algumas imutâncias
da nossa sociedade, nomeadamente essa dolorosa questão estética
dos portugueses com a imagem que transmitem de si próprios aos outros e
o grande fosso entre as expectativas irreais e o pouco empenho real na sua conquista,
sendo que o fosso acaba por ser o sítio onde se vive. Naturalmente que
também se procurou dar um contributo social mais imediato, através
da sugestão de soluções para estes problemas, em particular
pela voz e acção do Ditador que a todos encaminhou para um final
feliz. Vendo a sua gloriosa memória ameaçada e a incapacidade dos
vivos em resolverem sozinhos os seus problemas, o Ditador, com um Grande Sortilégio,
forneceu a todos a memória de um extraordinário passado individual,
de modo a assegurar que todos ficassem satisfeitos com o presente, garantindo
assim a alienação geral e a suave e discreta continuidade do seu
reinado de resignação, de continhas bem feitas, de grandes eventos
nacionaleiros e de saudade.