No século passado, a partir da década de 40 (e ainda contemporaneamente, embora de um modo muito menos acentuado) foi amplamente discutida a questão da existência de uma filosofia portuguesa enquanto originariamente nacional ou consentânea com as condições espirituais do homem português. Estava em causa, portanto, uma filosofia com características específicas, diferente das filosofias de outros países. Esta questão levantou, logicamente, o problema da existência das filosofias nacionais, sobre o qual se afirmaram posições divergentes. A rejeição de que as filosofias possam ser produtos da idiossincrasia de cada povo apareceu ligada a uma certa definição de filosofia que supõe uma concepção intemporal e a-espacial da especulação filosófica, negando que ela se caracterize em função da época ou do lugar em que se expressou. O argumento é que a filosofia tem como objecto o universal, definindo-se, por essa razão, como a ciência do ser enquanto ser ou do ens ut sic, pelo que não pode denominar-se nacional. Filosofia quer dizer sistema da razão pura, exigindo a libertação de qualificações étnico-geográficas: as características nacionais ou os modos peculiares de cada povo não passam de preconceitos que falseiam a realidade quando se invocam essas supostas características para adjectivar a filosofia.
     É bem conhecido a este respeito o ponto de vista de Manuel Antunes (em Haverá filosofias nacionais?) segundo o qual a história leva à conclusão da inexistência de tal tipo de filosofias. E de facto a história nega que haja um vínculo a unir os diferentes cultores da filosofia de um mesmo país, que imprimisse um carácter distintivo ao pensamento de todos eles, do modo a poder falar-se de uma filosofia portuguesa, francesa, etc. E qual poderia ser esse vínculo? Invocou-se, por exemplo, a raça. Mas poderemos falar de uma filosofia hebreia característica que se vai perpetuando de geração em geração, sempre idêntica através do múltiplo e do diverso? Obviamente que não. E haverá um elo substancial, em função da raça, na linha que se estende de Leibniz a Heidegger, passando por Wolff, Kant, Hegel, Schopenhauer, Engels e Nietzsche? Também não. E os exemplos poderiam multiplicar-se. E a geografia ou o meio geográfico? É certo que o filósofo é um ser no mundo, um ser-num-mundo determinado. Mas enquanto filosofa ele procura pôr entre parênteses as condições concretas, espaciais, em que especula, para se erguer ao universal. Há depois a língua. Existe de facto a tese que faz do idioma o vínculo das filosofias nacionais. Mas pensemos, por exemplo, que os grandes escolásticos portugueses e espanhóis dos séculos XVI e XVII se expressaram em Latim. Neste caso não podemos dizer que os idiomas português e castelhano serviram de vínculo constitutivo de filosofias portuguesas e espanholas com características próprias. Afinal, o idioma não possui qualquer virtude mágica, não sendo senão um instrumento do pensamento. Por tudo isto, para discriminarmos as diversas filosofias temos de ir à raiz, ao filósofo: às qualidades do seu temperamento (mais contemplativo ou mais activo, mais intuitivo ou mais discursivo, mais sintético ou mais analítico) e também às influências que recebeu. Estes dois factores é que determinam em último caso o modo de filosofar e, consequentemente, a filosofia. Se então perguntarmos se as filosofias têm uma pátria responder-se-á: «Sim, as filosofias têm uma pátria; porém, esta é, muito mais que um espaço geográfico, um espaço espiritual».
     Diversamente, a afirmação da existência de filosofias nacionais está presente, em primeiro lugar, na teoria romântica do Volksgeist, supondo que as filosofias são uma emanação do espírito de cada povo e tendo levado à consequente afirmação de filosofias diferenciadas e até opostas entre si em função das nacionalidades. Esta teoria teve a sua época de vigência nos finais do século XIX, estabelecendo uma relação íntima entre a filosofia e a idiossincrasia nacional e, recorrendo à comparação do caso das filosofias com o das literaturas, pergunta: se há literaturas caracteristicamente nacionais, porque não dizer o mesmo das filosofias? Paralelamente, esta posição estava dependente da teoria do nacionalismo, que teve também a sua maturidade no mesmo século XIX, tendo sido uma consequência da formação das novas nacionalidades nessa época. Ela implicava que os historiadores de cada país fossem levados a afirmar a diferenciação dos diversos grupos raciais e étnicos e consequentemente das respectivas manifestações culturais. Daí o cuidado em investigar tudo o que tivesse ou parecesse ter um sinete nacional: a língua, a vida popular, a história, o direito, o folclore, a poesia, a arte, a música e a própria filosofia. Tal valorização e atribuição de um carácter nacional a todas essas manifestações culturais nem sempre estavam isentas de motivações políticas.
     Em Portugal, a teoria do nacionalismo está presente no movimento da Renascença Portuguesa, dos princípios do século XX, que se inspirou no ideal romântico e nacionalista que reagiu contra o negativismo e o derrotismo nacional da geração de 70 do século anterior. O seu principal representante foi Teixeira de Pascoaes, que afirmou a originalidade e as características próprias da cultura portuguesa em todas as suas manifestações e, portanto, também na filosofia.
     No entanto, Pascoaes declara, à primeira vista surpreendentemente, que «o português não é nada filósofo» e que tem «um verdadeiro horror à filosofia, imaginando encontrá-la em tudo o que não entende» (Arte de Ser Português). Um contra-senso? Não. O que ele pretende dizer é que nós não possuímos uma filosofia no sentido técnico do termo, enquanto construção sistemática da razão. Possuímos, porém, um pensamento (uma filosofia em sentido lato), que se manifesta em todas as nossas produções culturais e não apenas na literatura filosófica propriamente dita. Tal filosofia, assim entendida, é designada por «idealismo naturalista», «idealismo saudoso» e «espiritualismo naturalista», expressões estas que têm a mesma significação. A designação de «espiritualismo naturalista» reside na natureza da alma lusíada, que se explica pela paisagem privilegiada da região do Marão, onde Pascoaes passou a maior parte da sua vida, meditando, contemplando a grande serra e escrevendo; mas explica-se sobretudo pelo sangue dos nossos antepassados que habitaram a Península, os Arianos e os Semitas, de quem herdámos, respectivamente, o naturalismo e o espiritualismo. «Estes dois sangues, equivalendo-se em energia transmissora de heranças, deram à Raça lusitana as suas próprias qualidades superiores, que, em vez de se contradizerem – pelo contrário -, se combinam amorosamente, unificando-se na bela criação da alma pátria». E qual a razão de ser da designação de «idealismo saudoso» para o pensamento português? Ela está no facto de a Saudade ser o sentimento constitutivo da alma lusíada, contendo também os dois elementos mencionados, por virtude da sua própria definição: «A Saudade é a lembrança de alguma coisa com desejo dela». Pois na lembrança está o espiritualismo e no desejo o naturalismo. Por isso, a Saudade é «o sangue espiritual da Raça» e a sua «força criadora e redentora», revelando-se em todas as criações do espírito lusitano: na literatura (e sobretudo na poesia popular), na linguagem popular, nas palavras intraduzíveis, na filosofia, na jurisprudência, na arte, nas lendas, nas frases célebres e na religião. Essa sublime unidade dos princípios naturalista e espiritualista «descobre-se, pois, claramente em todas as formas da nossa actividade intelectual e sentimental. Eis aí a característica mais profunda e bela da nossa Pátria».
     Tal atitude de atribuir à Saudade o fundamento do modo de ser característico do espírito português e das suas produções espirituais ficou a designar-se por «Saudosismo», que provocou, por um lado, entusiasmos e, por outro, reacções desfavoráveis. As segundas partiram sobretudo de António Sérgio, nas páginas da revista A Águia, o órgão da Renascença Portuguesa. Os primeiros encontram-se inclusivamente em pensadores estrangeiros, sobretudo galegos. Um deles é Ramón Piñeiro, cuja principal pretensão, em Siñificado metafísico da Saudade, é afirmar a existência de uma filosofia galaico-portuguesa característica, em virtude da identidade do fundo espirituaal comum aos povos galego e português. E é a poesia lírica que reflecte com mais fidelidade esse fundo espiritual comum, pois é ela que dá a nota de autenticidade galaico-portuguesa no conjunto cultural europeu. Ora, uma das qualidades dessa lírica é a de expressar poeticamente uma vivência anímica chamada Saudade, cuja análise pode levar à constituição de uma filosofia comum a ambos os povos.
     Mas as influências de Pascoaes verificaram-se acima de tudo no movimento da chamada «filosofia portuguesa», cujo fundador e principal representante foi Álvaro Ribeiro. A sua obra O Problema da Filosofia Portuguesa (1943) significou o despertar do interesse pelo tema das filosofias nacionais. Nela, o seu autor declara que «a obra filosófica que não seja um mero produto escolástico tem sempre carácter pessoal, nacional e universal», reflectindo necessariamente as condições de idade, sexo, raça, língua e cultura, pelo que «mais correctamente se poderá falar de filosofia alemã, francesa, inglesa ou italiana do que de filosofia moderna ou contemporânea». Quanto à filosofia portuguesa, o optimismo nacionalista, quase delirante, de Álvaro Ribeiro está bem expresso numa entrevista publicada no jornal Diário Ilustrado, em 1960, de que destacamos estas palavras elucidativas: «A filosofia portuguesa tem possibilidades de exercer uma função libertadora do pensamento europeu, que se encontra hoje em situação perplexa e angustiosa (...). Quando for ensinada nos nossos liceus e conhecida no estrangeiro, a filosofia portuguesa, que anuncia um novo ciclo de bom entendimento entre os homens, será saudada e admirada em todo o mundo pelos escritores mais inteligentes». Trata-se, como está bem claro, de uma atitude reveladora do messianismo português, com o pressuposto de que a nossa filosofia está destinada a uma grande projecção no futuro.
     Hoje em dia as posições assumidas sobre este assunto são em geral mais esclarecidas e fundamentadas, com o reconhecimento de que possuímos uma filosofia, mas relativamente modesta; por outro lado, discutir se se trata de um tipo de pensamento caracteristicamente nosso não passa de uma antiga e «vexata quaestio».